26/05/09

Por uns minutos

Acordei cedinho esta manhã, tomei um banho rápido, vesti as calças cinzentas que estavam ao fundo da cama, escolhi uma camisa ao calhas do armário. Esqueci a gravata, pus os sapatos do fim-de-semana. Na mesinha de cabeceira apanhei a aliança, baça do uso, e o relógio com o vidro partido mas que continua a funcionar. Saí do quarto em silêncio enquanto tu respiravas tranquilamente, a dormir apesar da luz do Sol que entrava já pela janela, a prometer um dia bonito e a fazer reflexos nas paredes, no teu cabelo e no chão encerado.
Apanhei uma maçã vermelha e saí de casa apressado. Apanhei o autocarro. Deixei-me embalar pelas rodas grossas, passando por lombas e pedras, buracos e finalmente a auto-estrada. Quando cheguei ao hospital levava as requisições para exames comigo e fui andando até encontrar o sítio certo. Bem disposto, pensava no livro que ando a ler, lamentando não o ter trazido comigo. Ontem ficou debaixo do triciclo da pequenita enquanto estivemos a jogar aos índios e cowboys. Logo à noite acabo-o.
Trivialidades, as luzes, as cores do hospital. Tentar adivinhar na cara dos outros em silêncio o que os consome. Estarão doentes ou são de rotinas? Chamaram-me e lá fui andando mas continuei neste jogo que jogamos há 25 anos, de adivinhar as vidas dos outros pelas suas caras, pelos sapatos...
Foi só quando já estava deitado há um bocadinho, o médico que não sei se era médico de costas para mim a escrever qualquer coisa no computador, que tive um baque. Conheço bem esta sensação, de túnel, este desespero que me sobe pela garganta acima e que parece que vai explodir numa torrente de palavras ou num grito.
Obrigo-me a respirar calmamente, brinco com o médico que não sei se era médico, explico-lhe porque estou ali, por nada, por rotina, porque a minha mulher me obriga, porque me quer saudável até, como combinámos, fazermos os dois cem anos, amigos e a dar os nossos passeios nocturnos ou matinais.
Foi nesses minutos, entre o início do exame e o momento em que atabalhoadamente apertava as calças e o cinto no fim da breve consulta, que pensei que a minha vida ia mudar, temendo pelo fim das nossas rotinas que adoro. Enquanto ouvia o médico que devia ser médico a ditar para o computador que estava tudo bem, tudo normal, tudo como eu queria, benzia-me interiormente, apesar de não ser católico o que aprendi em pequeno faz parte de mim, agora é continuar a gozar bem a vida. Liguei-te obviamente, como um miúdo. Hoje vamos festejar.

1 comentário:

anniehall disse...

E finalmente libertou-se a escritora que existe em si!)
Gostei tanto de ler este seu escrito, mas mesmo tanto que estive mesmo para não dizer nada e egoistamente guardar para mim todo o sabor das palavras ....