Todos os dias, de manhã, acordo num sítio estranho. Dou os bons dias às pessoas com quem me cruzo. Pessoas estranhas, que sorriem e respondem ao meu cumprimento. Todas sabem o meu nome. Isso perturba-me mas apenas momentaneamente e ninguém dá por isso.
Todos os dias visto o meu fato e a camisa que alguém engomou. Ponho a gravata com o nó que aprendi a fazer sozinho há 84 anos, no ano antes de entrar para a universidade. Calço pacientemente as meias pretas e os sapatos que deixaram aos pés da cama, desço para tomar o pequeno-almoço. Já não uso relógio, não preciso de ver fisicamente o tempo a passar, sinto-o nas mãos enrugadas, no cabelo que não tenho na cabeça, nos velhotes que vão desaparecendo da sala comum. Aí vejo um pouco de televisão, sem a ver propriamente, olho para dentro, penso em coisas boas, penso nos meus filhos em pequenos. Não há melhor e mais doce lembrança que a dos miúdos a crescer, vê-los a repetir os mesmos erros parvos que nós.
Enrolo-me nos meus anos, com medo do que está para vir. Há muito tempo que tenho esta sensação, do medo da morte, da pequenez da vida. Sinto falta dos meus netos, dos meus amigos, dos passarinhos, de andar na rua, sinto falta da genica das pernas, de ser capaz de fazer os laços nos meus próprios sapatos. Lembro-me de passear pelas ruas com os miúdos pela mão, lembro-me de conversarmos muito. Lembro-me de os ver a crescer, a ficar autónomos e a irem para a vida. Mas hoje já não é fácil lembrar-me do nome ou da cara deles ou acertar com os dois ao mesmo tempo. Os bisnetos são uma vaga ideia, não sei quantos são.
Fiz cem anos, o que me aterrorizou. Cem anos de uma vida boa, sem grandes chatices, uma vida anterior à República, anterior à I e à II Guerras Mundiais, à crise de 39, à televisão, à lua, à internet, ao telefone, a quase tudo o que é hoje o mundo...
Parabéns avô.
1 comentário:
Parabéns ao seu avô ! Festa grande :)
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