20/11/10

Adeus avôzinho

É uma espécie de justiça divina que faz com que chova agora. As grossas gotas batem nos vidros do carro. Choro. No banco de trás, os meus filhos perguntam:
"ainda estás triste, mamã?"
Sim, nada mudou,
e também,
"parece que só chove no nosso carro, porquê?"
Aqui chove, chove uma chuva miudinha mas persistente. A cabeça lateja fininho.
O meu avô morreu hoje, uma morte também miudinha, que já estava a acontecer vagarosamente há ano e meio.
Pouco antes de fazer cem anos deixou-se ficar na cama. O meu avô muito querido, feito um passarinho pequenino, baralhado com o que se passava à sua volta. Começou a ficar cada vez mais confuso, os filhos passaram a pais, os netos passaram a referências vagamente estranhas, tratava-nos com deferência, como se não nos conhecesse, contava-nos histórias bizarras de compridas viagens de comboio, queixava-se de esperar. Nem se apercebeu verdadeiramente da morte da minha avó, de quem dependia como tudo.
O meu avô juiz, que quase me inspirou a ir para Direito, companheiro, contava-me histórias compridas, com que eu delirava, dizia poesias e quadras, em português e espanhol, e tinha uma paciência mais ou menos infinita,
"batem leve, levemente", uma e outra e outra vez, com pronúncia da senhora do sétimo, até eu saber os versos todos de cor para a apresentação no teatro.
Paciência para nos ver pendurados na mesa da sala de jantar a fazer cambalhotas, para me ver vestir as suas casacas e os seus laços de cerimónia, para bisbilhotar as suas caixas deslumbrantes de fotografias com pessoas novas que eu não conhecia
"este sou eu, percebes pelo bigode? Esta é a avó, viste que bonita é?"
O meu avô escritor e romântico. O meu avô iluminado, disposto a conversar sobre todos os assuntos, e sempre bem-disposto. O meu avô catita, sempre de fato e colete, mesmo quando estava doente ou engripado, sempre aprumado.
101 anos. Portanto, uma vida muito comprida e penso que boa. Até esta fase final, que foi triste. O meu avô amigo.
"Vais ficar triste para sempre, mamã?".

5 comentários:

S.A. disse...

:(

Claudia disse...

Bjs de força!

Sónia disse...

beijos gordos e enormes.
Que memórias bonitas que guardas dele...
...e a eles tranquiliza-os: diz-lhes que vai passar, que com o tempo fica uma memória doce.

Sara disse...

Beijos a todos.
Sara

Nuno Roseta da Cunha disse...

Lamento... :(
Ainda assim, é bom ter noção da vida fantástica que o teu Avô teve certamente!
Força!!
Bjs