07/11/11

O sol nos pés

Esta noite, incorporei-te no meu sonho depois de teres chegado tarde e, hoje de manhã, enquanto tomava banho, fiquei arrepiada com a água fria a cair nos pés. O desconforto foi tão grande que nem a água a escaldar, quando virei a torneira para o lado vermelho, compensou. Já passaram duas horas, mas ainda sinto os pés frios, o que é das coisas mais desagradáveis de ter fria, porque tem o condão de arrefecer tudo o resto.
Quando sinto os pés frios, lembro-me instantaneamente do meu avô, com os pés ao sol enquanto me lia os seus livros mágicos ou escrevia os seus romances. Primeiro, escrito à mão em folhas fininhas e translúcidas, depois passado à máquina, que mais tarde passou a máquina de escrever eléctrica e que ainda vejo em cima da arca muito grande que está na sala lá de dentro. Apesar de não ir a casa dos meus avós há mais de cinco anos, talvez.
Vejo a máquina da mesma maneira que vejo nitidamente o meu avô a fazer a barba com os seus pijamas fofinhos de flanela, que vejo o menino Jesus pequenino sobre a cómoda do quarto e a minha avó a fazer arroz e sopa nas panelas de brincar ou com a caixa de costura aberta na camilha da sala, a passajar pacientemente meias com o ovo de madeira e o dedal de prata. A memória do cheiro da casa dos meus avós também persiste em mim, com o cheiro doce que têm as memórias de criança.
As casas sem gente são iguais a casas vazias de móveis, apesar de continuarem iguais ao que eram quando as pessoas sairam pela última vez. Não sei se a casa se apercebeu que não tem já gente, que o meu avô já não põe os pés ao sol, que a minha avó não organiza as suas receitas na mesa da cozinha laranja, guardadas na gaveta aos pés da letra da música da Nossa Senhora do Almortão. Ou, se calhar, a casa também está triste.

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