04/06/12

A minha vida é um sonho

Agora apresento-me sempre como personal shopper. Ponho um ar superior e passo a impressão de ter uma clientela selecta e endinheirada que me confia as escolhas das tendências, que podem ir desde roupa a aromas e até decoração de casa. Muita dondoca, muito galã, uma vida muito animada. Dou a ideia de que passo a vida em lojas sofisticadas, que me relaciono com os designers e com os empreendedores, e até - quando me entusiasmo mais -, que sou eu que ajudo a determinar tendências.

Na realidade, esse trabalho obriga-me a gastar muito dinheiro.

A minha avó sempre me disse:
"Uma mulher nunca anda mal arranjada",
enquanto me dava dinheiro para comprar uns sapatos ou um laço para o cabelo. Era dinheiro que não chegava a entrar no esquelético orçamento familiar, que era a pensão do meu avô. Essa pensão esticava um mês inteiro para as despesas dos avós, minhas e da minha tia, que fazia todas as semanas uns tratamentos especiais para os nervos e que eu nunca soube bem o que eram, só sabia que chegava a casa pior do que tinha saído, mas acho que só eu é que reparava.

Vou todas as semanas duas vezes ao cabeleireiro/laboratório, fazer unhas e madeixas, brushing, extensões e todos os técnicos que forem surgindo. Aí testo as minhas histórias, refino os nomes, acrescento pormenores que vão validar o que conto. A menina das unhas inveja a minha vida, sinto-o em cada pincelada de verniz rosa. Deslumbra-se com o que conto e ajuda-me a construir esta imagem de glamour.

Por norma, evito as pessoas que conhecem a minha vida de antes. Na rua, desvio-me sempre das Marias Cristinas ou das Marias do Céu que andaram comigo na escola e que tinham sempre pena de mim. É um sentimento que detesto. Se calha encontrar alguém conhecido, puxo do meu sotaque mais sofisticado e deslumbro com as histórias que copio das revistas cor-de-rosa do cabeleireiro, às vezes até sou amiga íntima das nobres da vida.

E gasto dinheiro com as deslocações. Para não encontrar ninguém conhecido, trabalho a duas horas diárias de casa. Mas assim é mais seguro. Ou pensava eu, que hoje em dia ninguém está seguro em parte alguma.

O dia até estava a correr bem, tinha evitado uma Maria da Luz da primária que ao longe parecia bem na vida, passado à frente de um António Manuel do liceu na fila dos autocarros e almoçado sem ninguém me ver na zona da restauração.

Agora, mastigo a vergonha de ter sido descoberta pela menina das unhas de boné e avental, que berram "não sofisticada", enquanto enchia o carrinho das compras online do hipermercado com fraldas tamanho 5, papel higiénico folha dupla sem aroma, uma bola de piscina, amaciador e detergente de roupa de sabão natural, escovas de dentes de três tamanhos diferentes, algodão em discos e desmaquilhante e a marca de leite condensado ("não substituir") preferida da D. Maria Lopes.