Um homem barbudo e gordo, farto de ser o único a trabalhar quando todos se divertem na noite da consoada, entrega o casaco do turno pelas seis da tarde. Não tem família, mas vai pela cidade deslumbrado pelas luzes, pelo vazio de gente e pelo silêncio. Deambula por Lisboa até às seis da manhã, quando é atropelado, sem gravidade, por um carro no Martim Moniz e decide regressar a casa. Não terá trabalho a partir de amanhã.
O comboio que devia conduzir já não chegará antes da meia noite a Coimbra. O seu atraso será notado. Não só pelos viajantes tardios, que esperam com muito frio em Santa Apolónia por um novo condutor, mas também pelos que aguardam a chegada de familiares e encomendas.
O novo condutor deixa o peru por trinchar, os presentes por abrir até à manhã de Natal e os filhos a chorar. Mais tarde, a mulher vai cortar um dedo com a faca mais afiada e vão acabar os três nas urgências, onde os médicos celebram com bolo Rei mole e espumante meio quente a chegada do Menino. A árvore de Natal está decorada com luvas cheias de ar e desenhos infantis da ala de pediatria. Em vez de presentes, os médicos trocam de pacientes. As urgências estão quase vazias. Não há doenças no Natal. Acidentes e bebedeiras, mas isso é mais tarde. À saída do hospital, vão atropelar, sem gravidade, um homem barbudo e gordo. Vão dar-lhe boleia para casa.
Em Coimbra, Maria espera pela chegada do seu bebé. Um bebé que ainda só conhece de fotografia e que vai adoptar. Não pode ter filhos. O marido foi a Lisboa buscar o menino. Da cabine na estação, telefona a avisar e diz-lhe que abra um dos presentes que está debaixo da árvore, para ajudar a passar a angústia do tempo. O azul. Estão dois presentes debaixo da árvore, o dela para ele e o azul, que tem forma de livro. Abre-o cuidadosamente, para não estragar o papel. Fecha os olhos e sonha com o que poderá estar lá. É um álbum de fotografias, da família dos dois, que está dispersa pelo mundo. Além da família, há fotografias dos dois em bebé, em criança, e ao longo da vida até se encontrarem. E há uma fotografia do bebé que virá a caminho. Maria vai à janela e decide ir esperar para a estação, onde está frio e húmido, mas isso não a incomoda. Espera. Dentro de minutos ou horas terá o seu bebé. Com a demora da viagem, o bebé, que vai ser o mais bonito do mundo para Maria, chega às duas da manhã a dormir ferrado. Maria e José abraçam-se felizes. O bebé só acorda no dia a seguir.
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