20/06/10

Agora eu

E, de repente, sou eu o homem de 92 anos, de bigode branco e quase sem cabelo na cabeça. Ponho as mãos nos bolsos do casaco castanho, olho em volta. O café está cheio de gente que não conheço nem reconheço. Olho para a árvore da esplanada, a abanar com o vento, a mesma desde que para aqui vim morar, em 1963.
Olho para o lado. O meu irmão está velho. Tem mais dois anos do que eu, ele não gosta que o diga. Tem ainda menos cabelo, está gordinho. Tem ar de velhote simpático. A mulher trata-o bem. Os filhos e os netos também.
Foi com eles que almoçámos, antes de os deixar partir para o alvoroço que é as suas vidas. Ainda converso mais um bocadinho com o meu irmão e a minha cunhada, combinamos ir ao cinema, e depois despedimo-nos também. Eu não tenho filhos. Não calhou. Se fosse hoje, se calhar a medicina conseguiria ultrapassar isso.
As riscas do meu casaco estão já sem cor. Os bolsos já não têm forma. Era um casaco bem estiloso quando o comprei, agora se calhar já não se usa. Mas era estiloso, quando passeava cheio de mim mesmo pelos jardins e pelos cafés chiques do Estoril.
Tacteando, encontro um velho papel no bolso do casaco. Uma relíquia que guardo desde há sei lá quantos anos. Desdobro-o pela milionésima vez no caminho de casa. Sento-me, por instantes, no muro da escola. Fixo os olhos no mar, depois no papelinho que tem escrita uma declaração de amor.
Gozo mais uns instantes o mar, o sol, o vento a despentear-me os cabelos, as pessoas a passear. Observo.
Depois, ponho-me de novo a caminho de casa. Rodo a chave na porta, inspiro mais uma vez o ar da rua e entro. A casa está às escuras. A Maria Teresa ainda deve estar a dormir, está, confirma-me a senhora que tem tratado dela desde que piorou, revezando-nos nos cuidados.
O mais provável é não ter dado pela minha ausência. Da mesma maneira que não dará pela minha presença quando acordar. Dou-lhe um leve beijinho na testa e sussurro "amo-te meu amor, o mar perguntou por ti".

2 comentários:

Sónia disse...

que lindo este texto!

anniehall disse...

Escreva , sempre ! foi tão bom ler este texto .